26/03/2013

Os Nossos Contos.... Quem és tu, Alice? Parte 2



Hoje é sábado e como não tenho aulas deveria estar a dormir. Sei que não vou receber os parabéns de ninguém. Nunca compartilhei esta data porque é ao mesmo tempo o dia em que fiquei órfã, ainda que tenha um pai. A família, claro, sabe da data, mas é demasiado doloroso para o meu pai relembrar, então optam pelo silêncio, dando-me parabéns espiritualmente. Eu não fico triste. Tenho apenas dez anos mas não me sinto como uma criança. Sei o que é ser criança, basta-me olhar à minha volta. Não tenho coragem de pedir nada ao meu pai, nem um abraço. Na opinião dele eu já tive o maior presente: a vida. Não faço birras. 
Como tudo o que me põem no prato. Não tiro más notas nem me meto em confusões. Não faço nada para que o meu pai dê por mim.
Mas hoje acordei e não me apetece continuar assim. Como é que vai ser quando tiver 15, 20, 40 anos? O meu pai não pode odiar-me para sempre, ou pode? Bem, odiar será uma palavra demasiado feia. E eu também não digo palavras feias. Olho para o meu relógio de pulso na mesinha de cabeceira e vejo que são 8 e 10 da manhã. Demasiado cedo para uma criança se levantar a um sábado. Uma criança normal. Demasiado tarde para acabar com a minha calma em relação ao homem que se diz meu pai. 
Durante este tempo todo já pensei fazer asneiras para poder tê-lo a olhar mesmo para mim e não apenas quando diz “Alice, precisas de dinheiro para a escola?”. Temos a Milú que não é minha mãe mas é paga para fazer de conta que é. Cozinha, lava, passa a ferro, dá-me abraços e pergunta-me como foi o meu dia.
Desço as escadas descalça para não faz barulho mas ouço a Milú a abrir portas e armários. Só não a temos ao domingo. Que é quando a casa fica demasiado pequena para mim e para o meu pai e passamos o dia a encontrarmo-nos. Pode ser que amanhã seja diferente. Porque eu quero mudar isto. O meu corpo já não aguenta tanto silêncio. “Alice, parabéns! São 10 anos e tu estás tão crescida. Ainda ontem eras uma bebé rechonchuda”. Agradeço com um sorriso forçado enquanto sou sufocada no meio daquele abraço. Ainda ontem a mamã estava viva. “Onde está o meu pai?”. Pergunto mesmo sabendo a resposta. “Ainda não o vi hoje, mas acho que está lá em cima no quarto.” Não consigo mais guardar dentro de mim esta dor que me tira todos os dias um bocadinho da minha infância. “Milú, porque é que o meu pai não gosta de mim?” Se ela estivesse com pratos na mão não tinham sobrado senão cacos no chão. Ela olhou para mim esperando ver um adulto e não alguém como eu: pequena e frágil. O meu interior é de um adulto e exijo respostas de adulto. 

CONTINUA...

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