O traço da pétala - Carlos Rodrigues

Então, tu disseste que a vida era um intervalo, que era um círculo sem início nem fim, que eramos nós, que eras tu, que era eu, disseste que vida era uma flor no ramo mais alto da árvore mais perfeita do jardim mais belo, disseste que aquela flor era o meu rosto e que o ramo era a tua existência, nascida e nutrida apenas para um dia me ver sorrir.

Então, tu disseste que a saudade era o bater de asas de um pássaro sem rumo nem destino, que a distância eram as gotas da chuva a antever a bonança da tua presença, que a nossa união era aquela perfeição que apenas duas mãos dadas alcançarão, disseste que aquela flor era o meu corpo e que o ramo era o teu olhar, sublime e profundo apenas para me ver.

Então, eu escutei o pulsar do nosso coração e tudo eram melodias e cores, a erva verde, alta, as flores redondas, os céus azuis, as nossas mãos, o teu regaço e um intervalo, sim, porque tu disseste que a vida era um intervalo entre a minha ausência e o final eterno que nos esperava, sim, e os passeios nos jardins, e as contemplações dos abraços do oceano no areal, e o vento a levar-nos os cabelos, a arrastar os tempos na ampulheta, porque tu, então, disseste que o meu coração era aquela flor e que o ramo era o teu amor, onde poderia sonhar e mergulhar na cumplicidade da nossa alma.

Então, eu visualizei tudo o que tínhamos e sentíamos.

Até que, um dia, pétala por pétala, outros ventos levaram a flor. O ramo vergou-se numa despedida de dor inaudita, e a flor esvoaçou, galgou as montanhas, partiu. Tudo aquilo que disseste, então, a flor levou consigo. Todas as palavras que me dedicaste, todas as melodias com que me encantaste, todas as paisagens que me apresentaste, e tudo isso num simples olhar, e tudo isso num simples escutar, porque é, como nunca mo disseste mas sempre sentimos, no silêncio de mãos dadas que se apreciam as mais profundas baladas e se constroem as histórias de amor.

Pétala por pétala…

IN - Crónicas do Quotidiano