08/04/2013

Autor do Mês - Carlos Rodrigues - "Ninguém"...


NINGUÉM 


Dediquei-te rios de tinta e fiz-te parte de mim.
Execrável, arrastei-me pelos estilhaços das memórias de nós e procurei-te nas sombras do meu coração, procurei-te em qualquer réstia de esperança que nos (re)unisse. Mas os factos falavam mais alto que qualquer ilusão, qualquer ilusão é submissa a toda a emoção, e dei-me com todos os factos, a ilusão em nadas e a emoção era um vazio no meu estômago, local onde outrora haviam reinado as borboletas sempre que um pouco de mim se encontrava em ti.
Sempre que os corpos se juntavam e as almas se amavam.
A tortura começou exactamente no fim. Sozinho, uma mesa de café e uma conversa por ter. Sozinho, uma mesa de jantar e uma companhia por ter. Sozinho, um livro e a saudade no meu coração por ti a bater. Olhei pela janela, abri-a de par em par e deixei-me respirar, inspirei as nuvens e os raios de sol, expirei as estrelas e o manto frio da noite. Estava livre de tudo o que me ligava a ti. Estava livre de um pressentimento, de um socorro sem grito, de uma dor sem sangue. A tortura começou exactamente no que julgava ser o fim. Quando nos separámos eu percebi que a escolha tinha sido a correcta; quando nos separámos, eu percebi que a escolha tinha sido a única. E sorri, porque estava livre.
E nesse sorriso aprisionei-me nas grades da minha solidão.
A solidão, sim, porque, repara, vieram os dias e os meses, porque vieram as pessoas e as estórias, os risos e as memórias, mas uma partícula de mim ficou por aí perdida, numa qualquer praia na fronteira, num qualquer passo de dança trocado, num qualquer beijo partilhado, lusco-fusco e a lareira a crepitar. Pouco seria tudo quando nada é o que sinto, nem nostalgia. A minha tortura começou no fim de te esquecer. Porque percebi que sem ti eu conseguia ser. Feliz, eu, normal, completo. Porque percebi que te quis esquecer, porque percebi que não queria mais de ti saber, porque percebi o quão insignificante pode uma memória ser quando para nos destruir tudo tentaste fazer. Aprisionei-me nas grades da minha solidão, mas logo essa tortura de te perceber longe, mas de me saber em paz com isso, também teve fim.
As tuas fotografias deixaram de me chamar. O teu olhar deixou de me amar, a tua voz de me entregar, o teu cheiro de me aproximar. A memória de ti que abraçava com aquelas forças que nos agarram ao passado era a nossa fotografia, era a nossa história, não estória, história, eram os teus braços a fazerem-se muralha da minha existência. Uma por uma, as grades tornaram-se poeira prateada nas minhas mãos, um vento as levou e o meu coração gelou ao som de uma porta que se fechou. Seremos assim tão imperfeitos que basta um simples gesto para destruir o que nos levou a unir e a sentir?
A ti, por seres tu, dediquei-te rios de tinta e fiz-te parte de mim. Agora és ninguém.
A tortura tornou-se sabedoria, porque percebi que nunca devemos assentar por menos que um sorriso espontâneo e honesto.
Agora és ninguém. E eu tão bem…

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